se eu me virar do avesso, talvez você me leia
se eu gastar essa imagem de me virar do avesso
se eu falar sobre isso repetidas vezes
talvez, você me leia
talvez você me entenda
talvez, eu me faça compreensível
se eu repetir e repetir e repetir mil vezes
a escatologia
se eu descrever meus órgãos, meus ossos, a comida que eu comi, as fezes
se eu expôr tudo isso
em uma imagem
de um corpo virado do avesso
talvez, você goste de mim
talvez, eu fique tranquila
talvez, a ansiedade passe
talvez, você me veja
talvez, eu não seja mais sombria
talvez, eu não me preocupe mais com você me lendo
eu não me lembre mais de você
você tome seu lugar
na genealogia das minhas memórias
mas só se eu moer os ossos
se eu triturar as carnes
se eu for de novo e mais uma vez
sombria
estranha
incompreensível
errática
talvez, se eu chorar muito
um rio inteiro de lágrimas
cry me a river
sonho em um dia chorar tanto
mas, tanto e tanto
que estarei pronta
para uma nova alegria
uma alegria fresca e infantil
uma alegria que não precisa de nada
uma alegria que aplaude o sol simplesmente porque o sol está nascendo
uma alegria que eu costumo olhar da janela do trem
e que não se preocupa
com o ridículo que é escrever um poema
ou aplaudir o sol
ou não ter nada pra dizer
às vezes, eu não tenho nada pra dizer e não gosto disso
uma montanha-russa na minha cabeça que desce e sobe
desce e sobe
quem olha por trás do quadro percebe o escuro
tudo é tão óbvio
ainda assim, estou presa aqui
e não quero revelar
sigo, fingindo essa desenvoltura que eu não sei se engana alguém
queria falar de outras coisas
mas, não consigo
gostaria de parar de fingir também
o que mais tenho para dizer?
nada
escrevo porque esqueci como se chora
escrevo, quem sabe, para lembrar como se chora
e aí, talvez, que sabe
eu me faça compreensível
legível
entendível
se eu me lembrar como se chora
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